domingo, 26 de junho de 2011

Amores ...



Sentimentalidades foi um termo que me marcou pela primeira vez quando ouvi-lo na música da Marisa Monte – Amor I Love you – enquanto seguia à casa de uma tia para lá deixar a minha irmã que passaria o final de semana com nossas primas. Era, na verdade, uma citação de Machado de Assis dentro da canção. À época ainda não tinha idéia de que a literatura viria a ser essa sine qua non condição à minha existência. O termo, todavia, nunca me saíra da cabeça. Aquele som estranho, novo, bem particular, mas incomum: sen-ti-mental-idades.

O final da infância, a chegada à adolescência e o vislumbre de uma idade adulta - que mais parece ser um cerceamento de toda a felicidade contida no parquinho e nas coleções de bonecos de Os Cavaleiros do Zodíaco do que o atingimento da independência e da autogestão - acabou por deixar guardado na gaveta do inconsciente a curiosa palavra machadiana. A caminhada, rápida ou vagarosa, a todos é comum no que se volta ao acúmulo. Acumulamos lugares, coisas, cheiros, texturas, nuances, pessoas... Palavras, canções, cenas. Acumulamos a nós mesmos, inclusive: as muitas faces que vamos tendo na medida em que a vida nos gera novamente, pois o mundo é uma grande placenta e os itens da lista de acumulados são nossos nutrientes embrionários. Dentro da minha nutrição, aquela música que ouvi em uma tarde de sol amuado e tímido dentro de um carro engordou-me a raiz, fermentou-me a seiva, floriu a ponta de meus brotos gmininospérmicos.

Sem muito de mim mesmo, ainda mui novo, cabeleira assanhada e farda azul e branca, cores bragantinas, acabei por aprender na escola assunto que plano didático algum contempla, mas a vida ensina. Aprendi que o coração não apenas pulsa e impulsiona o sangue por dentro do corpo. Ele bate inexplicáveis coisas da alma. Sem muito jeito eu fui aprendendo essas coisinhas da mesma forma como aprendi a andar de bicicleta. Lembro-me de papai atrás de mim a segurar na cela e correr e correr até que o equilíbrio me viesse. Quando ele soltava a “bike” – como chamávamos à época – logo a pouco me ia ao chão como quem corre para abraçar alguém que volta para casa após longo tempo longe. Amar nunca é fácil e, assim como a andar de bicicleta, demora-se um pouco a aprender, contudo quando se aprende “nunca se esquece”. Meu primeiro amor foi sem jeito, sem ação, sem pedido e sem resposta. Também o foi sem choro e sem vela. Era apenas um gajo que nada sabia da vida descobrindo a sua América bravia em mares nunca d’antes navegados.

Outros amores vieram. Não muitos. Não longos e nem curtos. Apenas amores pueris e encantados como nos contos dos desenhos animados com suas fadas prontas a fabricar uma peripécia a que tudo termine em felicidade no final, mas sem um beijo de amor que selava a eternidade. O mais próximo que chegamos o eterno é o efêmero. De todos os amores que eu amei dois destaquei para jamais esquecer porque sem eles o meu hoje seria como ontem. São marcas de ferro que ardem como abraço e que forjaram as minhas curvas e retas. A cada um desses amores eu diria: a ti quem hoje sou e a minha gratidão por isso. Por ti que tanto esperei, por ti que em mim tomei, por ti que curti sem lei, por ti que noutro mar navegar deixei apenas na minha saudade fiquei. Não a saudade de ter-te em mim, haja vista que na memória te tenho, mas a saudade de quem fui - tão pequeno - na tua grandeza que me engolia.

Amores amigos. Amigos amores. Amigos-amantes. Tão tênue é a linha que divide os sentimentos que nos povoam, que nos nutrem a vida. Coisinhas da alma. Brincadeira de criança que no pique-esconde acha doces e balas, acha pessoas. Uma das músicas mais bonitas de um filme que considero obra prima da Disney diz que “sentimentos são fáceis de mudar mesmo entre quem não vê que alguém pode ser seu par”. Assim, amigos podem tornar-se amantes, até mesmo porque são amantes fraternais em todo o caso. É apenas uma mudança de amor, ou uma mudança no amor. Buscar entender recai na mania humana de querer enxergar tudo pela mente. Por que não usar os olhos do coração? A mente ama? É ela capaz de comutar dois em uma unidade? Será mérito da mente quando ficamos acordados esperando o telefone tocar? A porta se abrir? Um abraço nos encontrar? Foi a mente quem ditou aquelas palavras no pedaço de papel de caderno que trouxe palavras tão bonitas que mais pareciam um verso em caligrafia de primário? Não é a mente que nos deixar a voar, mas é ela quem no apercebe para isso.

Quando amei sem saber o que era isso, o que se fazia com isso e qual analgésico ou médico do livrinho do plano de saúde procurar para curar essa tinha nada mais do que uma década e poucos. Gajo branquelo, cabelo acinzentado, bochechas fartas, olhar desinteressado, total alienação do mundo e muitos sonhos. As frivolidades de minha idade e condição fizeram-me refém do que me tomava de dentro para fora. Foram jovens anos de uma intensa sensação de incapacidade. Não cabia em mim tudo o que me aflorava. O que fazer? Como lançar de mim essa coisa branca, vermelha, azul, laranja, rosa, verde, amarela e luminosa que emana da alma sem lançar junto um pedaço de mim? Na dúvida, trouxe comigo até minha atual idade. E ao longo de todas as idades acumulei como ourives aos seus diamantes. Um dia quiçá dormirei numa cama de mil quilates e cada um deles me trará à boca o sabor do beijo que selei, o cheiro do cabelo que acariciei e a ranhura da pele na qual me enlacei devoto. Meus amores em meus quilates, meus diamantes e suas idades, as idades de meus amores, as idades de minhas lembranças. As somas de mim mesmo.

A cá que só estou, sento-me ao lado de mim mesmo e abraço a aurora negra da meia noite, permeado das graciosas lembranças dos amores que tive. Amados a consumo e contento. Sonhados e chorados com desalento. Cada qual com sua história.
Cada qual sem fim.
Cada qual a ti, ó min’alma, ofertado.
Cada qual na mente registrado e no peito guarnecido.
Cada qual com sua idade e duração, efêmera e eterna.
Todos eles sentimentalidades na imensidão daquela tarde de sol frio que jamais deixou a minha consciência por anunciar o que nunca me deixaria o coração.

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